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    Ricardo Nêggo Tom

    Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

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    Baby Consuelo e o trio elétrico do fim do mundo no carnaval da Bahia

    "Que Baby seja liberta e encontre a salvação da sua existência antes do seu apocalipse pessoal", diz Ricardo Nêggo Tom

    (Foto: Reprodução/Instagram)

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    Uma cena pra lá de inusitada ilustrou o carnaval de Salvador neste final de semana. O tradicional diálogo entre os líderes dos trios elétricos que desfilam pelo centro da cidade, teve um momento que foi tanto hilário, quanto constrangedor. Baby Consuelo e Ivete Sangalo trocavam confetes e serpentinas quando, do nada, a inigualável intérprete de “Brasileirinho” fez um anúncio que deve ter deixado os foliões tristes e apreensivos. Entre cinco e dez anos o mundo vai acabar. É o apocalipse, o último trio a passar pelo planeta terra arrastando multidões para uma eterna quarta-feira de cinzas. E para deixar os foliões no clima de fim de festa, Baby pediu para que Ivete cantasse “Eva”, canção do italiano Umberto Tozzi que fez sucesso com a banda Rádio Táxi, e cuja regravação fez Sangalo explodir como intérprete da banda homônima da canção.

    Curiosamente, a letra de “Eva” fala sobre o “final da odisséia terrestre” e o retorno do poeta apaixonado aos jardins do éden, em companhia de sua “pequena Eva” e tendo agora apenas “o céu azul” para eles voarem. Afinal, toda terra havia sido reduzida a nada, nada mais. Baby sugeriu que Ivete provocasse no público que ali estava para se divertir, o medo através do qual o conceito religioso judaico-cristão conseguiu alienar mentes e anular existências humanas para afirmar a sua ideia de superioridade moral e religiosa. Um conceito que condena a alegria em nome da obediência a um deus que os homens tristes e mal-amados criaram à suas imagens e semelhanças. Um deus que teria construído um mundo perfeito e habitável, para depois destruí-lo por pirraça e vingança contra aqueles que não o adorarem. O mesmo deus que hoje em dia abençoa o genocídio praticado por Israel contra os palestinos, e que em tempos distantes legitimava a escravização e a destruição de outros povos que não se prostravam diante dele.

    O fanatismo religioso que agora rege a mente de uma das maiores cantoras da música popular brasileira, é o mesmo que vem infestando o país política, social e culturalmente há pelo menos três décadas. Ao contrário do cantor Márcio Victor da banda Psirico, que disse que Baby está precisando tomar um “remédio”, eu entendo que ela e outras milhares de pessoas que foram cooptadas pelo fundamentalismo neopentecostal, precisam mesmo é de uns bons livros de história que lhes permitam compreender o apocalipse cerebral ao qual foram submetidos. O nível de degradação cognitiva é tão grande sob o fundamentalismo evangélico, que Ivete dizendo que iria “macetar” o fim do mundo e impedir que ele acontecesse, pareceu mais lúcido. O que eu trago a discussão aqui não é o fato de que o mundo vai ou não acabar. Particularmente, eu creio que não.

    Mas, caso a aventura humana na terra seja interrompida por uma catástrofe universal, a culpa será dos seres humanos que aqui habitam, e não por uma vontade de Deus, que não teria criado tudo de forma tão perfeita, para depois destruir porque os seres que ele também criou, “a sua imagem e semelhança”, não souberam adorá-lo como ele queria. Até porque, isso colocaria em dúvida os conceitos de onipotência, onipresença e onisciência que lhes são atribuídos. Como um Deus que sabe de todas as coisas, antes mesmo de elas acontecerem, não saberia que nem toda a humanidade iria adorá-lo como ele gostaria? Que comece o contorcionismo teológico para “explicar” que Deus está dando aos seres humanos uma chance de se converterem a ele e serem salvos. E essa chance se dá através de “vozes proféticas”, como a de Baby Consuelo, e de outras pessoas “usadas” por ele para anunciarem Jesus Cristo e sua salvação. Um contrassenso quase apocalíptico, se levarmos em conta que Deus já havia enviado o seu filho para cumprir tal missão. Se nem todos deram ouvidos ao filho de Deus que foi morto na cruz para “pagar pelos pecados da humanidade”, porque dariam a Baby Consuelo em cima de um trio elétrico curtindo o carnaval de Salvador?

    Carlos Drummond de Andrade em seu poema “O Deus de cada homem”, já explicava essa pretensão do ser humano em ter um deus particular que lhe nomeie como escolhido para salvar o outro de algo que apenas o deus de cada homem faz ele enxergar. “Quando digo ‘meu deus’, afirmo propriedade. Há mil deuses pessoais em nichos da cidade. ”, escreve Drummond na primeira quadra de seu poema, e explicando mais didaticamente do que qualquer teólogo ou religiosos pretensamente conhecedor dos mistérios divinos, como se forma a profusão de opiniões acerca de um mesmo Deus, sem que haja, de fato, uma certeza em cada uma delas. A única certeza existente, é a de que tais pessoas vivem sob a influência de suas convicções sobre Deus, tentando influenciar outras à mesma crença e anulando a existência humana e a possibilidade de “salvação” daquelas que não aderem ao seu pensamento. O que Drummond resume categoricamente quando escreve: “Quando digo ‘meu deus’, grito minha orfandade. O rei que me ofereço rouba-me a liberdade. ”

    O deus que Baby Consuelo passou a acreditar, lhe roubou a liberdade de raciocínio e de ação, impondo-lhe o medo de que se o mundo acabar sem que ela esteja de joelhos diante dele, sua alma irá para o inferno. Dante Alighieri, em sua alegoria cômica das profundezas da terra, retratou muito bem esses aspectos abordados pelo fundamentalismo religioso, instando os fundamentalistas a refletirem sobre os pecados capitais que eles cometem diariamente, mas que o seu deus particular não condena. Trazendo para os nossos dias os 9 círculos do “Inferno de Dante”, poderia citar a ira com que o pastor Silas Malafaia costuma se manifestar em nome de “Deus”, a ganância sobre o dízimo com que a maioria dos pastores sobrevivem, a violência que defendem ao se associarem ao bolsonarismo e a heresia de se apresentarem como profetas escolhidos por Deus para guiar a humanidade. O último ponto Freud explica. Ou não. O certo é que anunciar o apocalipse em pleno carnaval é reflexo do inferno interior que o deus de Baby promoveu dentro dela e que a instrui a promover dentro de outras pessoas.

    Por outro lado, Ivete, com toda a sua espirituosidade, mostrou que o deus que ela carrega dentro de si não permite que ela se intimide com o fundamentalismo de gente que ficou triste e amargurada após se “encontrar com Deus”, e tratou de “macetar” o deus particular de Baby e as crenças que ele impõe a ela. Obviamente, os fundamentalistas religiosos se puseram a amaldiçoar Ivete e a ameaçá-la com a ira e a justiça de seus deuses pessoais. Eles desejam o mal quem não crê no deus que eles criaram dentro de si, e colocam a culpa na conta do Deus que eles ainda não alcançaram por terem moldado o seu deus à imagem e semelhança do deus de homens tristes, amargurados e incapazes de conviverem com as diferenças criadas pelo Deus que eles ainda não conheceram. Que loucura! E de pensar que Jesus, que conhecia esse Deus que amou as diferenças, transformou água em vinho numa festa de casamento. Uma prova de que a alegria é um dom divino, desde que tomada com responsabilidade, consciência e respeito ao outro. Jesus não anunciou o fim do mundo na festa de casamento onde ele estava e nem advertiu os convidados para que bebessem o vinho que ele acabara de “produzir”, sabendo que o mundo iria acabar. Apesar de que, segundo o conceito cristão, ele voltará um dia para fazer tal anúncio.

    Quem sabe Jesus o fará em pleno carnaval para mandar o maior número de pessoas possíveis para o inferno. Os fundamentalistas manifestariam a sua estranha alegria e diriam: Eu avisei! Ele é fiel para cumprir. Só que não. Até porque, Jesus não irá voltar pelo simples fato de ele já estar entre nós, como defende os próprios fundamentalistas. Se não estivesse, quem será que anda expulsando demônios, pedindo dinheiro aos fiéis e promovendo revelações e milagres nas igrejas? O deus pessoal de cada um? Se Deus um dia quis usar a voz de Baby Consuelo, foi para cantar divinamente como ela sempre o fez. E como Ivete também o faz. Quantas pessoas gostariam de cantar como elas, mas não conseguem? E não há deus pessoal que lhe conceda tal graça e tamanho dom. Apenas um Deus que aprecia as diferenças, a arte e a alegria, seria capaz de nos brindar com tão belas vozes em timbres distintos. E elas o louvam exercendo o dom que lhes foi dado, e não cantando apenas o que um deus fundamentalista lhes impõem. Que Baby seja liberta e encontre a salvação da sua existência antes do seu apocalipse pessoal. Deus é mais! 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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